"A escrita não-criativa ou conceitual é um tipo de literatura que nasceu e se tornou possível pelo digital. Embora seus precedentes estejam arraigados no modernismo do século XX, é só quando tudo se torna digital que os escritores começam a perceber novas possibilidades de linguagem - ou seja, quando ela se transforma literalmente em material plástico."
(Robô reproduzindo um manuscrito da Bíblia. Projeto robotlab. Foto de Marc Wathieu.)
O que está por trás das interfaces amigáveis pelas quais navegamos diariamente? Suas imagens e animações, suas cores e espaçamentos são todos determinados por um tipo especial de linguagem: os códigos de programação. Em certo sentido, se seguirmos essa percepção, concluiremos que o texto, na era digital, se metamorfoseia em tudo o que vemos em nossas telas de computadores, tablets e smartphones. Esta é uma premissa do poeta conceitual Kenneth Goldsmith, ao propor o seu conceito de uncreative writing.
"(...)a linguagem digitalizada pode ser vertida em qualquer recipiente concebível: o texto digitado em um documento do Microsoft Word pode ser analisado em um banco de dados, visualmente modificado no Photoshop, animado em Flash, comunicado para buscadores de texto online, enviado como spam para milhares de endereços de e-mail, e importado para um programa de edição de som para ser transformado em música - as possibilidades são infinitas."
Para o autor, assim como o advento da fotografia modificou o papel da pintura no âmbito das Artes, o meio digital criou condições para pensarmos em uma revolução literária. As palavras teriam, atualmente, possibilidades estéticas que fazem multiplicar as formas expressivas verbais, tirando-as do aprisionamento na página.
Além da questão estética, o mundo digital nos traz outra, de igual importância: a noção de abundância ou excesso de informação. Além dos textos produzidos por humanos e que circulam incontrolavelmente na rede, há também as informações automaticamente trocadas entre computadores: necessidades de atualizações e correções de sistemas computacionais que são comunicadas diretamente, e sem nosso conhecimento, entre as máquinas. Esse tipo de situação comunicativa que ocorre em termos maquínicos levou o poeta canadense Christian Bök cunhar o termo robopoetics e a provocar os poetas a escreverem para leitores não-humanos, visto que, com a perda de relevância da literatura tradicional, esse público inexplorado poderia ser o único receptivo a conhecer uma poética inovadora e escrita especialmente para ele.
"Mas isso levanta a questão: literatura precisa ser lida? Ou, mais importante, está realmente sendo lida? Não tenho tanta certeza sobre isso. Claro, dentro dos limites de um livro ou Kindle, sim. Mas na internet, normalmente, o texto é visualizado. Ou copiado. Ou enviado por e-mail. Ou arquivado. Ou transformado em FTP. Ou em PDF'. Ou postado no Insta. Ou marcado. Ou gostado. Em outras palavras, as palavras na web são gerenciadas ou analisadas, mais do que ,realmente, são lidas. O espaço de computação é ativo e a leitura é passiva. Na web, queremos chegar ao próximo clique, então nos encontramos na posição de salvá-lo para mais tarde. E ao fazê-lo, o leitor se tornou um arquivista. E, por sua vez, também o escritor.
Segundo Goldsmith, arquivar seria o artesanato do mundo digital - como fazê-lo? Como organizar toda a informação a que temos acesso diariamente e desejamos guardar? O comando "save as" pressupõe, sempre, a existência de um original e, ao menos uma, cópia. Como classificá-los e diferenciá-los? Além disso, sempre que iniciamos um procedimento no computador,outros procedimentos são acionados. Por exemplo, ao carregar uma música em um aparelho digital, muito mais decisões são solicitadas de nós do que ao simplesmente colocarmos um disco na vitrola. Qual a extensão do arquivo, como encontrar uma música em determinada pasta, como nomear os artistas e quais informações serão incluídas nas faixas (nome da banda, da música ou seu estilo)? Isso tudo já vinha "pronto" no disco físico. Isso nos faz perder tanto tempo com o gerenciamento de informações no mundo digital, que o conteúdo acaba tendo diminuída sua relevância.
O que estamos experimentando é a evacuação de conteúdo. O conteúdo - aquele núcleo significativo de expressão - desapareceu. Em seu lugar, coloca-se a ideia de mover informações. Na verdade, não importa o que é essa informação; o que importa é que estamos ocupados com a circulação desse material. Na verdade, a crítica literária Marjorie Perloff cunhou um termo, "informação em movimento", para significar o ato de manipular a linguagem, bem como o ato de ser emocionalmente tocado por esse processo.
O poeta afirma, assim, que o prefixo re (no sentido de "repostar", retuitar...) seria o índice dessa relação contemporânea com o conteúdo. Descobrir algo estaria se tornando mais importante do que o que foi descoberto, enfatizando-se os gestos de distribuição e multiplicação. O antigo gênio sensível e torturado da Literatura Romântica, esse estereótipo, estaria sendo substituído hoje por um articulador e gerenciador de palavras. Daí não estamos muito distantes de ler a afirmação jocosa de Kenneth Goldsmith: “O mundo está cheio de textos, mais ou menos interessantes; não quero acrescentar a eles mais nenhum”. Ela nos confronta com um incômodo, teatral, mas, também, lúcido posicionamento .
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Para concluir, deixo aqui outras reflexões de Goldsmith sobre a uncreative writing, compiladas e traduzidas por mim a partir de uma palestra apresentada em 2014.
Considero que sua argumentação pode ser compreendida como uma arte literária, em diálogo com o que, algumas décadas atrás, os pensadores franceses pós-estruturalistas defendiam como uma escritura fronteiriça, que não se ativesse a nenhum gênero. É interessante observar como o poeta, em sua predição do naufrágio da literatura tal qual a conhecemos até hoje, não resiste à sua prática. E nos presenteia com pequenas cápsulas que oscilam entre a ficção (no sentido da criação de um universo previsto pelo autor) e o ensaio:
Escritores estão se tornando curadores da língua; um movimento similar ao do curador como artista nas artes visuais.
Escritores trabalham com a palavra, que é um material já "carregado"; eu recomendo apenas retoques suaves.
O futuro da escrita é gerenciar o vazio.
É possível ser inautêntico e sincero. A autenticidade é uma forma de artifício.
Nunca se esqueça de poesia é performance; no momento em que você está diante dos outros, você não é mais autêntico.
Escrita conceitual é escrita política, só que prefere usar a política alheia.
Escrever deve ser tão fácil quanto lavar a louça e tão interessante quanto.
Uma criança poderia fazer o que faço, mas não faria, com medo de ser considerada estúpida.
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